LIVRO
Publicado pela Douda Correria em Julho de 2020, 'Háptica' apresenta um conjunto de poemas escritos ao longo de dois anos. A composição final do livro é o resultado de um exercício que explora as dimensões comuns ao tacto e à visão, em particular através da noção de imagem. Pese embora a ausência de numeração nas páginas e de linearidade na narrativa, os textos estão dispostos numa espécie de roteiro, pautando-se por uma alternância constante entre um ângulo interior e exterior.
CRÍTICA DE HENRIQUE MANUEL BENTO FIALHO
"Guilherme Vilhena Martins (n. 1996), in Háptica (Douda Correria, Junho de 2020). Formado em Filosofia, este é o seu primeiro livro. O título remete para uma forma de percepção sensorial, muito em voga na actualidade por via do desenvolvimento de tecnologias caracterizadas pelo uso de interfaces tácteis. Nestes poemas o toque desdobra-se, podendo remeter para a audição (toque de som) ou para a visão (tocar é ver, como no braille): «o olho háptico, / longo, / longe, / na rota irrecuperável / da paisagem em falta». A sinestesia é uma das dimensões da linguagem poética que, desde há muito, se alimenta de combinações entre visão e tacto. Ver é ouvir, tocar é ver, a poesia expande as convenções comunicacionais, entra em ruptura com as mesmas fundando uma linguagem essencialmente expressiva, pautada por cacofonias, zeugmas, metonímias, jogos semânticos e fonéticos diversos na demanda de uma língua total. O aspecto mais curioso destes poemas é, no entanto, o modo como escapam a um discurso contaminado por emoções e sentimentos. A expressão cinge-se, neste caso, a um dizer as coisas sem sobre elas colocar a subjectividade afectiva do sujeito. São poemas escritos e reescritos a partir da enunciação dos elementos que compõem um corpo ou uma paisagem, sendo toda a atenção direccionada para a forma como esses elementos podem articular-se entre si ao serem deslocados para o texto: «a imagem da árvore / só existe porque a árvore existe / sem se ver». O problema que levantam é, pois, o da debilidade da percepção e, por consequência, de uma poesia que pretenda ser-lhe fiel sem pôr em causa a parcialidade das impressões enquanto via de acesso ao real: «tudo isto tentativa: / tenho a sensação que se me visse de costas / não me reconheceria»."
in Antologia do Esquecimento (http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.com/2021/01/depois-do-meio-dia.html)
OS CÉUS SÃO DIFERENTES?
mas uma linha cortada em voo
na crina lenta da água
mexe os ventos
na tela de fuligem às costas
do céu negro,
alagado por cima das cidades
negro selado a bronze, sul distante, sussurrado
e a barra dos prédios
transpira um lacre quente
nos candeeiros,
da luz até às árvores,
aos bosques só de som,
à dança das folhagens atrás do vento,
sobrelevado indício
antes da palavra
tudo cai sobre as asas:
os limites lunares avultados
nos arbustos,
os comboios acamados na distância
do silêncio tardio,
a cerveja escondida
a polir o tédio
nos lábios baixos
hora de mel no abismo?
máscara de cal em corpo alado,
joalheria difícil
de gume frio na prata de gelo,
sonho acima do ar impossível